Erradicar os lixões do país foi a meta estabelecida pela legislação brasileira para esta sexta-feira (2), data em que ainda existem, no entanto, 1.572 lixões e quase 600 aterros controlados —o que coloca os prefeitos de cidades que destinam seus resíduos sólidos urbanos a esses locais em conflito com a lei. A situação é mais grave nos municípios das regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste.
Trata-se de uma pauta do século passado, uma vez que a destinação final do lixo “em condições que não tragam inconveniente à saúde e ao bem-estar público” já estava prevista na lei 1.230 de 1954, assinada pelo então presidente Café Filho (1899-1970), sobre normas gerais de proteção da saúde.
Em sua versão do século 21, o prazo vencido agora é uma prorrogação do limite determinado pela PNRS (Política Nacional de Resíduos Sólidos), de 2010, que previa para 2024 o fim de todos os lixões e a consequente disposição adequada dos resíduos sólidos urbanos de todos os municípios.
Este não é o caso de lixões e aterros controlados porque eles não protegem o solo dos contaminantes produzidos na decomposição, que podem atingir os lençóis freáticos, além de atraírem vetores causadores de doenças e de emitirem gases de efeito estufa, responsáveis pela crise climática.
Mesmo assim, esses locais foram o destino de cerca de 33 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos em 2022, ou 43% do lixo gerado naquele ano, segundo levantamento da Abrema (Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente).
Aterros sanitários, ao contrário, são obras de engenharia com licença ambiental, que protegem o solo e as águas dos poluentes produzidos pelo lixo enquanto capturam parte do metano emitido após o aterramento de resíduos.
Os custos ambientais e climáticos da poluição gerada pela má gestão de resíduos no Brasil e os respectivos danos à biodiversidade e à saúde humana foram da ordem de R$ 97 bilhões em 2020, de acordo com estudo feito para a série Além do Lixo, da Folha, pela consultoria S2F Partners com cálculos do grupo GMWO2024, responsável pela análise de dados do relatório global de gestão de resíduos de 2024 da ONU.
“Governos, Ministério Público, Tribunais de Contas e as próprias agências de meio ambiente dos estados estão todos sendo omissos nesta pauta”, avalia Carlos da Silva Filho, presidente da Associação Internacional de Residuos Sólidos (ISWA, na sigla em inglês) e consultor da ONU para o tema.
“Historicamente, a gente fica tentando uma bala de prata, uma solução miraculosa, que só posterga o problema. Estamos jogando no lixão alguns bilhões de reais por ano”, afirma ele. “Temos casos de sucesso em alguns estados porque houve uma integração e uma pressão do Ministério Público e do Tribunal de Contas, que passou a rejeitar as contas de gestões municipais que fazem uso de lixão.”
Alagoas foi o primeiro estado do país a erradicar lixões, em 2018, a partir desse tipo de ação conjunta. Pernambuco e Mato Grosso do Sul também caminham na mesma direção. “A presença de lixões, além de responsabilidade administrativa, também configura crime”, explica Luciano Loubet, promotor de Justiça do núcleo ambiental do Ministério Público de Mato Grosso do Sul.
“Aqui no MS a gente reduziu de 80% de lixões para 6%. E os estados que avançaram neste sentido tiveram articulação entre órgãos ambientais, Ministério Público, Tribunal de Contas e prefeituras para buscar soluções possíveis.”
Acordos de não persecução penal têm sido feitos com prefeitos que se comprometem com a mudança de paradigma na gestão de resíduos, enquanto ações penais são reservadas àqueles que insistem no modelo ilegal.
Um levantamento feito pelo MMA (Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima) junto a 287 municípios apontou que 79% dessas gestões afirmam não ter disponibilidade de recursos financeiros para encerrar lixões.
Enquanto a destinação de resíduos para esses lugares costuma não ter custo direto para os cofres das cidades, cada tonelada de resíduo enviado para um aterro sanitário custa, em média, R$ 90 para ser aterrada. O Brasil produz, em média, 200 mil toneladas de resíduos sólidos urbanos por dia.
“Falta cobrança da sociedade pela destinação correta dos resíduos e falta sensibilidade aos gestores. Dinheiro eles têm para fazer uma festa de São João, para contratar shows milionários com artistas renomados e para outros gastos supérfluos. Por que não teriam para cumprir a lei?”, critica Pedro Maranhão, presidente da Abrema.
“Além disso, a legislação determina a cobrança de taxa ou tarifa para financiar a destinação adequada de resíduos. Queremos colocar o tema na pauta das eleições municipais deste ano”, aponta.
Segundo relatório da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico), apenas 438 dos 5.570 municípios brasileiros comprovaram ter sistemas de cobrança pelo serviço de manejo de resíduos sólidos. Trata-se de uma norma do Marco Legal de Saneamento Básico (lei 14.026/2020), e o não cumprimento implica restrições no acesso a recursos da União.
“O gestor que diz não ter recurso, mas não implantou a taxa, está renunciando a essa receita, o que leva à desaprovação de contas públicas e pode levar também à inelegibilidade”, afirma Juliano Araújo, promotor do meio ambiente de Goiás.
“O que estamos trabalhando é uma mudança de chave. Não é só encerrar ou não encerrar os lixões. Os municípios precisam fazer a gestão na ordem prioritária estabelecida do artigo 9º da PNRS”, completa.
O artigo estabelece como hierarquia a “não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos”. Ou seja, apenas o rejeito —aquilo que não pode ser reaproveitado, reciclado ou compostado— é que deveria ir para aterros sanitários.
Para Adalberto Maluf, secretário nacional de Meio Ambiente Urbano e Qualidade Ambiental, é importante incentivar a compostagem e a reciclagem de resíduos com a inclusão de organizações de catadores de materiais recicláveis, como forma de reduzir os custos de aterramento, favorecendo o fim dos lixões.
“Um programa nacional de assistência técnica para municípios aumentarem a coleta seletiva e acabarem com os lixões será lançado brevemente”, afirma. Segundo ele, o MMA detectou cerca de 370 municípios em que a destinação final de resíduos é mais crítica e lançará planos de ação específicos para eles.
Para Silva Filho, existe um roteiro para o fechamento de lixões que está sendo aplicado em vários países. “Não é colocar cerca e cadeado. O primeiro passo é que o município consiga entender o que ele tem de resíduo e quanto ele gera. Desidratar o lixão, desviando a fração seca [resíduos recicláveis], engajando cooperativas de catadores e sistemas de logística reversa que as empresas são obrigadas a fazer funcionar”, explica.
“Como o volume de resíduos orgânicos é percentualmente maior, dá para desviar essa matéria orgânica para compostagem, que é um processo natural e barato, e ter uma fração mínima que precisa ir para disposição final.”
Para municípios menores, estão em estudo processos de regionalização da disposição final para aterros que fiquem até 100 km de distância das cidades.
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